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1/4/2015 - Jundiaí - SP

Porque eu abraço a Ponte Torta




da assessoria de imprensa da Prefeitura de Jundiaí

Minha casa estava localizada dentro do quadrilátero determinado por um lado pela rua Vigário, por outro lado a rua Jose do Patrocínio. O Guapeva margeava todo o fundo do meu quintal e também aquele espaço gramado anexo a ele, chamado de Lenhadora, onde brincávamos quando crianças. Passando a fábrica de bebidas e pulando mais dois ou três quintais já estávamos na Ponte Torta.

Minha família chegou de mudança, vindo do Espirito Santo do Pinhal, nos idos de 1929, e sendo meu pai, funcionário da antiga Fábrica de Tecidos Milani (prédio onde hoje abriga a Receita Federal) a indústria fazia questão de ter seus empregados todos pela redondeza da fábrica. Dessa forma alugou uma série de casas, principalmente as de propriedade do doutor Francisco de Queiros Teles, das quais a minha era a casa de número 4, da Vigário J.J. Rodrigues, 307. No Beco da Lenhadora.

O nome Lenhadora, contava minha mãe, era porque naquele espaço ficavam armazenadas as lenhas e madeiras que aguardavam para atravessar o Guapeva, trazidas desde Estação Ferroviária, com destino ao centro da cidade que já se fazia pujante. Depois eram transportadas por um bonde, (pertencente à Cia Jundiahyana de Trens) puxado por tração animal e que também levava passageiros desde a Estação Ferroviária através da Ponte Torta, que foi inaugurada por volta de 1888, grande marco criado para colaborar com o progresso da cidade. Por conta disso aquele espaço que ganhou o nome de Beco da Lenhadora .

Desde a chegada da minha família, meu quintal recebeu em suas terras, variados tipos de cultivo. Meus familiares vieram da roça, acostumados com a lida da terra, trouxeram consigo variadas espécies de sementes e chegaram a plantar o próprio arroz que consumiam, no meu quintal e na área da Lenhadora. Como o rio ainda não era canalizado as águas invadiam o terreno além das suas margens e formavam uma espécie de “prainha”, muito propicio para o plantio de arroz que requer esse “brejo”.

As águas, nesses anos 30/40 , não eram poluídas. Prova disso é que meus irmãos brincavam e nadavam e até mesmo pescavam naquelas águas, sobre pontes de madeira construídas rusticamente. Um pouco mais além, já no início do atual Vianelo, os animais do quartel localizado no centro de Jundiai vinham beber e se banhar nessas águas, que também invadiam grande parte do que é hoje esse bairro. Contavam que a Prefeitura oferecia terra de graça ali para quem cercasse, cuidasse e ficasse responsável por seu terreno.

Falava das terras do meu quintal , que na minha infância tinha frutíferas variadas, além de uma bem cuidada horta e alguns animaizinhos. Todos os olhos aguardavam as primeiras goiabas vermelhas da temporada, os pessegueiros floriam a seu tempo, mangueiras, pêras d`agua, amoreira, abacateiro, etc.

Na verdade tínhamos também duas caixas com abelhas que nos forneciam o puro mel, colocadas na beira do rio , ao lado de uma touceira de cana-de-açúcar que a moenda transformava na corriqueira garapa que as crianças tanto apreciavam . De vez em quando rondava por ali uma cobra vinda do Guapeva e os que conseguissem vê-la, principalmente as crianças, aumentavam e muito o seu tamanho. Um tosco e mal fechado galinheiro, abrigava o galo, senhor de todas as poedeiras, que cantou em todas as manhãs de que posso me lembrar. E nas festas de fim de ano habitava por ali um peru, que logo mais iria compor a nossa mesa. Pobre e tão saboroso peru!

Absorta em meus pensamentos, no alto da minha árvore favorita, a escolhida por mim , uma portentosa amoreira, fazia dela o meu “Farol de Observação” , pela ampla visão que me proporcionava em todas as direções para além do meu quintal. Sigo nessa aventura!

Abaixo os olhos e posso ver minha querida mãezinha, mulher de aparência frágil, alma vigorosa e coração doce e farto. Posso vê-la, corpo arcado pelas agruras dos tempos de enxada em que deixara o suor nos cafezais do patrão. Ainda assim, pegava de tão familiar instrumento, sua velha e conhecida enxada, e carpinava toda aquela terra do meu quintal, cuidando da sua horta que nos abastecia com tenras alfaces, adocicados pimentões, cenouras e rabanetes crocantes, alho cebola, cheiro verde, etc., além dos vários tipos de tempero e ervas medicinais. Tudo cuidado com muito carinho.

Meu quintal tinha um portão voltado para o espaço da Lenhadora , onde as crianças brincavam protegidas pelos limites do Beco, naquela fase em que buscavam convívio social, para além dos seus quintais. Era uma espécie de clube para nos crianças.

Agora, em pé no galho mais alto da minha arvore, posso observar a segunda entrada do Beco, no 590 da Jose do Patrocínio. Logo a esquerda, um rústico barracão de pau-a-pique, a estrutura do telhado formada por eucaliptos bem postados e chão de terra batida. Era onde moravam a dona Maria do Firmino e sua prole, que era numerosa, não me recordo quantos eram, nem tampouco o nome de todos eles. Fato é, que vieram de Minas Gerais e se instalaram nesse espaço, que estendia até margear o Guapeva, exatamente no retângulo que abraça a grande figueira plantada por uma vizinha nossa, a dona Gema, creio no início dos anos 60.

A família da dona Maria do Firmino conservava um terreiro ao lado da casa sempre muito bem varrido, onde ciscavam galinhas soltas, que criavam para vender seus ovos, e elas próprias quando procuradas.

Alguns porquinhos no chiqueiro, creio que para consumo próprio. Afinal a família era numerosa. Abaixo do terreiro até encontra o rio, uma grande e variada horta. Na porta de entrada do barracão um Papagaio Louro, não sei se de bico dourado, mas tão duro que quase arrancou a ponta do meu indicador quando eu insistia em “dá-o-pé-louro” ao tagarela papagaio, toda vez que lá ia buscando algo que pudesse faltar na horta de minha mãe.

Certo é que nunca mais conversei com o tal papagaio.

O que nunca deixei de fazer, quando lá ia, era pedir licença para beber água que se encontrava no canto oposto da entrada da sala, num pote de barro de aparência fresquinha e colocado sobre uma mesinha simples de madeira, coberto por uma toalha de saco, bem alvejado, com barrado de crochê à sua volta. Eu atravessava a sala arejada e fresca de chão de terra batida, tão limpo que mais parecia um carpete de maceis, e meus pés pisavam felizes até chegar a agua que era bebida numa canjiquinha de alumínio reluzente. Foi a agua mais fresca e saborosa que eu pude beber na minha infância.

Um certo dia, as crianças já mais crescidas e dona Maria do Firmino se muda para uma casa melhor, cansada que estava da lida para criar os filhos e nos deixa o Barracão por herança, que inocentemente não soubemos conservar. Bem poderia ter sido um Museu Caboclo, bem no centro da cidade, junto à Ponte Torta…

Assim, nossas festas juninas que haviam começado no gramado da Lenhadora, migraram para o Barracão, muito bem adequado, que se transformava num verdadeiro arraiá colorido pelas bandeirinhas de todas as cores, grandes arcos de bambu formavam agradáveis caramanchões e as festas faziam um sucesso inesperado e grandioso atraindo não só as famílias do Beco, mas vizinhos de toda redondeza, inclusive do Vianelo.

A barraquinha de quentão era organizada por três ou quatro senhoras que formavam uma equipe capaz de preparar o melhor quentão. E minha mãe era uma delas. Os meninos mais velhos eram responsáveis por trazer os bambus e fazer os arcos dos caramanchões. A iluminação e o som ficava a cargo de dois ou três vizinhos eletricistas. A concorrida barraquinha de guloseimas, cujos pratos típicos ficavam a cargo de todos os vizinhos e caprichavam bastante na variedade e sabor.

A grande fogueira parecia uma torre, cujo fogo varava a noite toda, até o dia clarear! O “Varduca Fogueteiro” era o encarregado de vender as maravilhas que alucinavam as crianças: balões de cincão, buscapés, traques de riscar na parede, bombinhas menores até as de grande estrondo que os meninos soltavam nas águas do rio, os rojões de vara, vulcões coloridos, as chuvas de prata e até as inocentes bombinhas de estalar.

E assim com essas lembranças gostosas guardadas na mente, saboreando os frutos no alto da minha amoreira preferida, festa apôs festa, a música tocando, todos dançando iluminados pelo clarão da grande fogueira , o tempo passando e somos adolescentes , onde os sentimentos de amizade e bem querer se misturam entre aqueles que brincaram, brigaram e viveram naquele pedaço de terra : o Beco.

Muitos foram os personagens que ali viveram, ou fizeram parte desse chão tão especial, ao longo de toda uma vida.

Por ali passaram vendedores de meias de seda, mascates de roupas e quinquilharias, padeiros, leiteiros, afiadores de tesoura e faca, compradores de ferro velho, o cego dos espanadores, vendedor de geleia real, o homem do realejo com seu periquitinho da sorte, o cobrador de seguros de vida e tantos outros e não podiam faltar os pedintes, fregueses certos de todas as semanas.

Um dia qualquer se desce a Vigario no trânsito tresloucado de hoje e o coração se aperta e palpita. De repente o Beco já não existe mais. A minha casa 4 do meu querido quintal de tantas aventuras e todas as casas daquele quadrilátero, foram demolidas. Assim as últimas pessoas da minha família deixaram aquele lugar, depois de 80 anos estabelecidos ali.

Dizem que será um jardim. O Parque Guapeva. Que seja! E em cada flor um morador, um frequentador do meu Beco!

Preservou-se, para minha alegria, a grande figueira, no centro do terreiro da dona Maria do Firmino, local onde queimou a fogueira de tantas e saudosas festas juninas. E também a querida Ponte Torta, paisagem presente e comum em todos os dias da vida inteira. Ponte Torta, monumento solitário, guardião das lembranças dos que viveram no seu entorno, assim como eu!



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